Sunday, June 10, 2007


Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e disse-me:
- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha… Caminha sempre, sem descanso, nem fadiga, vai sempre avante não te detenhas, não pares nunca!... A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar os rouxinóis. Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino trôpego velho de cabelos cor de neve.
Calcei os sapatos e caminhei. O luar era profundo; às vezes, cantavam nas matas os rouxinóis… Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia desabrochavam as rochas, vermelhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz do imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já, os meus cabelos tornam-se cor do linho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam!
Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!...


Espanca, Florbela, (2000), Contos e Diário, Publicações Dom Quixote, p. 23-24

4 comments:

Sílvia Lopes said...

"Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!..."

Nós caminhamos sp a procura de algo mais, por ambição, por esperança...porque sim, porque estamos vivos o suficiente para não querer morrer no meio da estrada,sem ao menos ter tentado chegar não ao fim da estrada, mas ao fim que lhe queremos dar...os nossos objectivos ultimos, que por vezes povoam a nossa cabeça como sonhos ou como meras realidades planeadas. Existe sp pa onde ir, por onde caminhar...E cm se costuma dzr: "Fia-te na virgem e não corras!" looool

beijinho***

Monica said...

'Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver ventos e mar...'

Jorge Palma- 'A gente vai continuar'

Anonymous said...

Amo este texto!! Amo Florbela Espanca! Que senhora!!
Belíssima escolha Catarina! :)

Beijinho*

Corvos Pretos said...

num tem nada a ver ... mas n me sai mais nada da cartola a n ser .... amo tu :)